ASTOR PIAZZOLLA – UMA DÉCADA DE SILÊNCIO

Uma década após sua morte,
maior expoente do tango novo é motivo de concertos
e ganha sua maior biografia

CASSIANO ELEK MACHADO∆
DA REPORTAGEM LOCAL
Quando tinha oito anos, Astor
Pantaleón Piazzolla ganhou de
seu pai um pacote de presente
grande e pesado. Esfregou anima-
do as mãos de dedos curtos. Afi-
nal ganharia os patins tão espera-
dos. E veio a decepção.

Descascado o embrulho, nada
de patins. Lá estava aquela sanfo-
na esquisita que ele vira uma vez
na vitrine de uma loja de artigos
de segunda mão.

Ali, no encontro desajeitado do
garoto com o instrumento, come-
çava a trama de uma das grandes
revoluções da história da música
latino-americana. O vizinho Bra-
sil criaria a bossa nova. Astor
Piazzolla gestaria o tango novo, a
elevação do gênero popular ar-
gentino ao campo das sonorida-
des mais sofisticadas do planeta.

A história que começa com um
menino e um bandônion em um
casebre em Nova York, onde
Piazzolla passou a maior fatia da
infância, teve ponto final em 1992,
com a morte do músico nascido
em Mar del Plata, safra 1921. Em
respeito aos dez anos de silêncio,
o tango volta a ser novo em home-
nagens aqui e acolá.

São Paulo, por exemplo, dá lar-
gada hoje a um ciclo de concertos
que transpõem ao Centro Cultu-
ral Banco do Brasil as principais
facetas da caudalosa sonoridade
do instrumentista (leia ao lado).

É na Argentina, porém, que a
história ganha ímpeto piazzollia-
no. Suas livrarias exibem nas pra-
teleiras de lançamentos a biogra-
fia mais extensa já feita do músi-
co: “Astor Piazzolla – Su Vida y Su
Música”, da antropóloga argenti-
na María Susana Azzi e do histo-
riador americano Simon Collier.

O trabalho, que vem sendo rece-
bido com vivas da imprensa ar-
gentina, impressiona antes de tu-
do pelo fôlego. Fruto de cinco
anos de trabalho, suas 530 pági-
nas trazem o suco de 240 entrevis-
tas feitas em 13 países com músi-
cos, parentes, amigos e outras tes-
temunhas: do garçom dos restau-
rantes prediletos de Piazzolla ao
astro do violoncelo Yo-Yo Ma,
que homenageou o compositor
com o vigoroso CD “The Souls of
Tango” (entrevista essa oportu-
nisticamente anunciada na capa
como um “prólogo”).

Os detalhes expostos no livro
são suficientes para os piazzollia-
nos mais ferrenhos. No primeiro
capítulo, por exemplo, estão im-
pressos todos os endereços do
menino Astor, o número de sua
primeira carteira de identidade e
até a opinião de um guia de Nova
York de 1939 sobre uma casa no-
turna em que o garoto assistia re-
citais de bandônion.

O excesso de dados não chega a
estragar o desenrolar saboroso
das histórias da agitada vida do
músico. Moleque, passeava pelo
nova-iorquino Rockfeller Center
quando um artista jovem resolve
fazer um desenho de sua face. Era
Diego Rivera, o célebre muralista
mexicano (veja desenho ao lado).

Ainda garoto, na mesma Ma-
nhattan, Astor também encontra
o já célebre tangueiro Carlos Gar-
del. E lá vai Piazzolla mirim fazer
uma ponta no filme “El Día que
me Quieras”, estrelado pelo ídolo.
E as histórias se multiplicam nas
andanças Nova York-Buenos Ai-
res-Paris-Roma, cidades em que
ele viveu.

“Ele foi uma pessoa muito in-
tensa, na música e fora. Era do ti-
po que, se fosse pescar, não apa-
nhava peixinhos, pescava tuba-
rões”, diz à Folha a biógrafa de
Astor Susana Azzi. O balanço en-
tre Piazzolla homem e músico e a
vastidão dos dados são os pontos
fortes que a integrante da Acade-
mia Nacional do Tango sublinha
de seu trabalho. “Não fizemos a
biografia de um bronze. É um ho-
mem completo o da biografia.”

Homem de 1,70 m, atarracado,
de humor inconstante e capacida-
de criativa explosiva. Pelos cálcu-
los da pesquisadora argentina,
Piazzolla compôs nada menos
que 3.500 peças musicais, menos
de um terço delas gravadas.

É a pluralidade da obra, porém,
e não sua extensão, que faz com
que a biógrafa trate o músico com
o qualificativo “gênio”.

“Ele fundiu o tango, a música
clássica contemporânea e o jazz
em uma música original, que foi
tocada pelos melhores instru-
mentistas de seu tempo, sejam
jazzistas ou eruditos”, afirma.
“Levou o tango, então uma sono-
ridade simples para dançar, ao
status de música de câmara.”

Azzi sustenta que a Argentina,
que nem sempre recebeu as mu-
danças de Piazzolla de braços
abertos, hoje vive lua-de-mel com
sua música. Em meio ao momen-
to de crise, a única coisa a fazer é
tocar um tango argentino. O tan-go de Piazzolla.

El poema de Bandeira

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
– Diga trinta e três.
– Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
– Respire.

– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.